O Instituto da Estipulação em favor de terceiro

O Instituto da Estipulação em favor de terceiro

RESUMO

Versa o presente trabalho sobre a Estipulação em favor de terceiro e suas peculiaridades no ordenamento jurídico vigente.
Cuidou-se de explanar acerca da gênese e evolução do referido Instituto, pontuando, sem a pretensão de esgotar o tema, algumas das questões mais controvertidas, em especial acerca de sua natureza jurídica e emprego no caso concreto.
O escopo do trabalho é demonstrar a utilidade prática do referido Instituto, mas, sem deixar de analisar as problemáticas teóricas, bem como a sua aceitação no direito estrangeiro.
Palavras chaves: 1. Estipulação em favor de terceiro, 2. Efeitos do contrato, 3. Exceção ao princípio da relatividade.

ABSTRACT

This analyze is about a Stipulation for a third party and their peculiarities behind the Brazilian Legal System.
It was important to explain the genesis and evolution of the Institute, punctuating, without pretending to exhaust the subject, some of the most controversial questions about it legal status and employment in this case.
The scope of work is to demonstrate the practical utility of the Institute, but while examining the theoretical issues as well as their acceptance in foreign law.
Key words: 1 Stipulation for a third party, 2 Effects of the contract, 3 Exception to the principle of relativity.

Introdução.

Instituto peculiar, a Estipulação em favor de terceiro é exceção ao princípio geral pelo qual o contrato, em regra, gera efeitos apenas entre as partes contraentes, de modo que, nas situações onde há estipulação, incidem, excepcionalmente, reflexos na esfera jurídica de pessoa que sequer participou da avença.
A sua própria natureza jurídica é per si, ponto controvertido na doutrina, uma vez que não é pacifica sua aceitação enquanto espécie de contrato, havendo teorias que ensejarão oportuna menção.
É certo que o Código Civil de 2002 repetiu “ipsis literis” as disposições do Código Beviláqua, dificultando o estudo do referido tema, pois, os três secos dispositivos aplicáveis, em absoluto, refletem a complexidade inerente ao Instituto.
A legislação tão despretensiosa acerca da Estipulação em favor de terceiro torna ainda mais desafiadora a sua análise, pois, são poucos os doutrinadores que se dedicaram a ultrapassar o autoexplicativo.
Tais razões fazem com que a missão de explorar este antigo e ainda superficial ponto do Direito Civil obrigue o acadêmico possuir coragem de criar, mas sempre dotado de dedicação e respeito aos poucos e notáveis conhecedores do tema.
Neste diapasão, fez-se necessário para o sucesso deste estudo não apenas a criteriosa analise da melhor doutrina, bem como o cotejo na jurisprudência atual, por meio dos poucos julgados que vinculam o tema, pois, em que pese controvertida, os Tribunais Estaduais e Superior possuíram poucas oportunidades de dissertar a temática.
Na verdade, conforme será exposto, o Instituto em apreço ainda está muito vinculado a sua principal exteriorização – mas não a única – contrato de seguro, mesmo sendo manifesto que a Estipulação em favor de terceiro pode ser associada a outras modalidades de contrato, como por exemplo, contrato de venda e compra.
É, pois, imprescindível que haja empenho dos novos operadores do direito para aprimorar antigos institutos que estão pouco adaptados ao direito pós-moderno e permanecem estagnados não pela inutilidade, mas sim porque, apesar de tudo, permanecem inexplorados.

Natureza jurídica e controvérsias.

Tendo em vista tratar-se de trabalho acadêmico que visa, sem a pretensão de esgotar o tema, abordar os reflexos práticos e teóricos da Estipulação em favor de terceiro, não seria inviável compreender suas minúcias sem antes proceder com análise de seu conceito e evolução no Direito contemporâneo.
Desde logo é salutar que se conheça a controvérsia que envolve sua natureza jurídica, pois em que pese a posição quase que majoritária compreender a Estipulação em favor de terceiro enquanto contrato, são renomados e louváveis os doutrinadores que ousam discordar e conceituar referido Instituto da Estipulação em favor de terceiro enquanto cláusula contratual, dentre outras teorias.
Considerando que a Estipulação foi consagrada no Código Civil pátrio de 1916, em seus artigos 1.098 à 1.100, a posição do autor do regramento, Mestre Clóvis Beviláqua, revela muito mais do que postura doutrinária, mas sim o real escopo da utilização deste Instituto no ordenamento jurídico brasileiro.
Nestes termos, Silvio Rodrigues reitera o entendimento do mestre:
“Dá-se estipulação em favor de terceiro quando, num contrato entre duas pessoas, pactua-se que a vantagem resultante do ajuste reverterá em benefício de terceiro, estranho à convenção e não representado.”.
Em linguem pouco mais prolixa, a obra de Maria Helena Diniz apresenta as cinco grandes teorias que abordam a natureza jurídica da Estipulação, sendo uma delas, inclusive, preconizada pelo autor de nosso Código Civil de 1916.
Para os franceses Laurent e Demolombe, tal Instituto consubstanciava oferta que para se aperfeiçoar imprescinde a aceitação do beneficiário, enquanto que para os estudiosos Pothier e Labbe, a estipulação é gestão de negócios, na qual o estipulante representaria o interesse de terceiro, mesmo agindo em nome próprio.
Já para Collin, trata-se de declaração unilateral de vontade, sob a justificativa de que apenas o promitente deve aceitar a obrigação.
A doutrina pátria divide-se entre a teoria de Clóvis Beviláqua, que entende ser a Estipulação um contrato e a respeitável, porém minoritária doutrina que segue a posição de Planiol e Ripert, no sentido de que a estipulação é contrato entre estipulante e promitente, mas possui como acessório a vantagem à terceiro.
Oportunamente será necessário compreender os direitos que assistem ao beneficiário, cuja manifestação em contrato é irrelevante para o aperfeiçoamento do negócio jurídico, mas desde logo é conveniente a didática definição do Professor Álvaro Villaça de Azevedo:
“A estipulação em favor de terceiro é o contrato pelo qual uma pessoa obriga-se perante outra a conferir um direito em favor de quem não participa desta relação contratual.” .
Embora grande parte da doutrina reverenciada entenda que Estipulação em favor de terceiro é contrato, a opção do legislador tanto de 1916 como de 2002 por vincular tal Instituto à disposição geral de contratos e não aos contratos em espécie, certamente contribuiu para a celeuma.
De toda a sorte, salta aos olhos, independente da posição teórica adotada que a estipulação em favor de terceiro vincula pessoa estranha à relação jurídica dos contraentes, mas, é certo que referido vínculo se dá exclusivamente em sua benesse, razão pela qual se denomina este terceiro de beneficiário.
É bem verdade que a vida prática já obrigou que os Ministros do Superior Tribunal de Justiça apreciarem referido Instituto, quando tiveram a oportunidade de julgar a validade de um contrato de compra e venda com cláusula de estipulação em favor de terceiro. Ressalte-se.
“DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. ADMISSIBILIDADE. RECONHECIMENTO DE CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE VEÍCULO COM ESTIPULAÇÃO EM FAVOR DE TERCEIRO. OBJETO LÍCITO. VALIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICO. CONDUTA DE RESERVA MENTAL. IMPOSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO. SÚMULA 7/STJ. INCIDÊNCIA. – Se o acórdão recorrido estabeleceu que a recorrente “não perseguiu os fatos na busca da verdade real em flagrante conduta de reserva mental”, sua irresignação, quanto à violação do art. 110 do CC/02, esbarra na Súmula 7/STJ, pois a desconstituição desse entendimento implica o reexame dos elementos de prova constantes dos autos. – Na estipulação em favor de terceiro, tanto o estipulante quanto o beneficiário podem exigir do devedor o cumprimento da obrigação (art. 436, par. único, do CC/02 ou art. 1.098, par. único, do CC/1916). Com isso, o terceiro, até então estranho à relação obrigacional originária, com ela consente e passa efetivamente a ter direito material à prestação que lhe foi prometida. Nessas situações nem mesmo o estipulante pode lhe retirar o direito de pleitear a execução do contrato (art. 437 do CC/02). – Na hipótese específica dos autos, entende-se que a recorrente (promitente) não teria o direito de pleitear a resolução do contrato, mesmo que a empresa (estipulante) não tenha cumprido a sua parte na convenção, pelas seguintes razões: a) a recorrida (beneficiário) consentiu e aderiu de boa-fé à relação obrigacional; b) com a adesão, a recorrida adquiriu o direito material à prestação prometida; c) a recorrida possui um direito de ação próprio, autônomo, podendo exigir diretamente do promitente a prestação, sem a necessidade de interferência do estipulante; d) com a adesão da recorrida (beneficiário), o promitente não tem a faculdade de privá-la do seu direito, o que ocorreria por via indireta se admitida a resolução do contrato; e e) a resolução do contrato tornaria sem efeito o direito do beneficiário já incorporado ao seu patrimônio jurídico – Não há de se confundir inadimplemento contratual com ilicitude do objeto contratado. Como o acórdão recorrido confirmou tratar-se de um contrato cujo objeto seria a compra e venda de veículo em favor de terceiro, sem levantar qualquer dúvida sobre sua validade, pode-se concluir que a formação contratual não se deu com ofensa à lei e à moral. Ademais, considerando que a recorrente tem como atividade comercial a importação e exportação de veículos, não seria inoportuno consignar que a celebração desse tipo de contrato seria prática comum e rotineira. Recurso especial não provido. (REsp 1086989/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 23/02/2010, DJe 05/03/2010)” (grifo nosso).
No caso em tela, foi intentada ação de anulação de contrato com pedido de perdas e danos visando anular venda de veículo automotor que teve em suas disposições negociais a entrega de referido bem para terceiro, claramente vinculando benesse a pessoa não atrelada a relação jurídica dos contraentes.
Ato contínuo, diante do inadimplemento do comprador/estipulante, a citada medida judicial fora manobra encontrada para reaver o bem, sendo tal demanda foi julgada totalmente improcedente pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Rio Grande do Sul, uma vez que intentada em face do beneficiário.
O Recurso Especial fora interposto, dentre outras razões, pela suposta violação ao artigo 436, Código Civil, diante de possível descaracterização do instituto da estipulação em favor de terceiro ao atrelar tal Instituto à venda e compra em questão.
O magnânimo voto da Ministra Nanci Andrigh destaca o pesar das lacônicas disposições legais acerca do tema.
“(….) É certo que o novo Código Civil não alterou a disciplina do instituto da estipulação em favor de terceiro do Código de 1916, de modo que muitas questões relevantes ainda permanecem abertas ao debate doutrinário e à construção jurisprudencial.
Segundo Pontes de Miranda, “A eficácia da estipulação a favor de terceiro consiste em que o terceiro adquire o direito e a pretensão, que um dos figurantes prometeu, sem ser preciso que a prestação vá do promitente ao promissário e desse ao terceiro. A transferência é entre o patrimônio do promitente e o patrimônio do terceiro, sem qualquer intermediariedade. (…)” (Tratado de direito privado . Campinas: Bookseller, 2003, parte especial, t. XXVI, 1aed, p. 254).
Por essa caracterização jurídica, infere-se que a estipulação em favor de terceiro estabelece três ordens de relações jurídicas: entre estipulante e promitente, entre promitente e beneficiário, e entre estipulante e beneficiário” (in REsp 1086989/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 23/02/2010, DJe 05/03/2010).
Neste diapasão, ao que parece, este entendimento se aproxima da definição contida na obra do Professor Carlos Roberto Gonçalves:
“Dá-se estipulação em favor de terceiro, pois, quando, no contrato celebrado entre duas pessoas, denominadas estipulante e promitente, convenciona-se que a vantagem resultante do ajuste reverterá em benefício de terceira pessoa, alheia à formação do vínculo contratual. Nela, como se vê, figuram três personagens: o estipulante, o promitente e o beneficiário, este último estranho à convenção. Por conseguinte, a capacidade só é exigida dos dois primeiros, pois qualquer pessoa pode ser contemplada com a estipulação, seja ou não capaz.”
Na mesma toada é o entendimento de Miguel Maria de Serpa Lopez que define a estipulação em favor de terceiro como ocasião “em um contrato, estabelecido entre duas pessoas, pactua-se que o benefício dela decorrente, no todo ou em parte, reverterá em proveito de terceiro, que lhe é totalmente estranho. ”.
Em se considerando a estipulação em favor de terceiro como contrato, certamente será classificada como negócio jurídico unilateral, uma vez que apenas o promitente possui obrigação a cumprir, nos termos do ensinado por Álvaro Villaça de Azevedo:
“Esse contrato é unilateral, pois, uma vez realizada a avença, só o promitente tem obrigação junto ao terceiro; entretanto, a qualquer tempo, pode o estipulante, conforme o avençado e obedecidos os princípios que regem a matéria, revogar ou modificar, por ato inter vivos ou causa mortis, a estipulação, antes contudo, de ser devido o benefício.”

Gênese e Evolução Histórica

Ao definir o objeto deste estudo, o que não é nada controvertido na doutrina é que, sendo cláusula ou contrato, referido Instituto é, para todos os efeitos, uma exceção ao princípio da relatividade dos contratos, uma vez que, excepcionalmente admite-se reflexo na esfera jurídica de terceiro, estranho à relação contratual.
Bem anotados os ensinamentos do Professor Orlando Gomes que desde a sua primeira edição de sua atemporal obra “Contratos” menciona o presente Instituto e, desde logo ao identifica-lo, o faz enquanto “exceção”.
“Estipulação em favor de terceiro. A figura da estipulação em favor de terceiro opõe-se, de frente, à regra do direito romano, segundo a qual alteri stipulari nemo potest. A possibilidade de estipular por outrem foi admitida, configurando-se em vários contratos como os de seguro de vida, constituição de renda e transporte de objetos para terceiros destinatários, e excedendo no comércio jurídico, importante função prática.”
Neste sentido, justamente por ser exceção à relatividade dos contratos, ou seja, a impossibilidade de que os mesmos gerem efeitos benéficos ou prejudiciais a terceiros, que Maria Helena Diniz é categórica ao desvincular a estipulação em favor de terceiro do Direito Romano.
Contudo, ainda na Roma Antiga, algumas situações práticas começaram a flexibilizar o princípio da relatividade dos efeitos para que, nos casos em que o estipulante comprovasse interesse no negócio jurídico, a sua validade e eficácia fossem garantidas.
“Posteriormente, na época pós-clássica, também se reconheceu válida a estipulação, desde que patente o interesse do estipulante, tendo JUSTINIANO assegurado a sua validade com a cominação de uma pena, o que representava uma forma indireta de garantia. Também, no toante à posição do terceiro beneficiário, certos abrandamentos foram introduzidos, a saber: a) validade da estipulação em se tratando de dote, com cláusula de reversão no caso de dissolução de matrimonio; b) na doação de sub modo, a favor de terceiros que vieram confirmar a regra geral da nulidade.”
Em que pese à dificuldade de aceitação do reverenciado Instituto no Direito Romano, grandes nomes da doutrina passaram a serem claros no sentido de defender a sua validade.
“Contratto, rivolto ad attribuire ad una persona, rimasta completamente estranea ala conclusione del contratto medisimo, uma valida pretesa giuridica, ed efficace a farglie la acquisitare, diretamente ed in testa própria: senza cioè che possa di essa dirsi che sai stata rappresentata nella conclusione del contratto, o che essa rappresenti il promissário medisimo nel far valer ele pretense che dal contratto scaturiscono”.
A Estipulação em favor de terceiro foi, de fato, reduzida a termo pela legislação germânica, no Código Civil suíço, e após, na França, dois dispositivos no Código Civil, os artigos 1.119 e 1.120, totalmente restritivos, mas, que a jurisprudência tratou de flexibilizar .
Pelo exposto, resta claro que foi a vida prática que, como em diversos outros Institutos do Direito Civil, consagrou a Estipulação em favor de terceiro, pois embora seja a regra a inexistência de reflexos na esfera jurídica de outrem, estranho a relação originária da avença, é certo que as exceções a tal regra possibilitam negócios importantíssimos para a vida em sociedade, principalmente quando se trata de configurar uma benesse ao terceiro, como neste objeto de estudo.

Distinção entre outros Institutos próximos.

Conforme oportunamente demonstrado, a Estipulação em favor de terceiro é exceção ao princípio da relatividade do efeito dos contratos quanto às pessoas, mas, por não se tratar da única modalidade de exceção, é comum que sua figura jurídica seja constantemente confundida com as demais hipóteses em que pessoa estranha à avença receba qualquer interferência do pactuado por outros.
Sendo o escopo estudar a Estipulação em favor de terceiro, além de posicioná-la no ordenamento jurídico vigente, nas grandes doutrinas, nos casos práticos, é imprescindível traçar as suas distinções com as outras hipóteses de exceção à relatividade dos contratos.
Promessa de fato de terceiro. Também denominado pela doutrina de contrato por terceiro , trata-se de situação tão ou mais peculiar do que a estipulação em favor de terceiro, pois, ao passo que também vincula a avença ao terceiro, ao invés de configurar benesse a outrem, na verdade, representa encargo.
Nos termos do artigo 439, Código Civil, caso o terceiro não execute o encargo, o promitente responderá as perdas e danos sofridos pela outra parte no contrato, uma vez que o vínculo jurídico entre promitente e o beneficiário (que neste caso, é parte do negócio jurídico) configura obrigação de resultado.
Flávio Tartuce ao abordar o tema indica que é caso de “cessão da posição contratual, pois o próprio terceiro é quem terá a responsabilidade contratual”
Contrato com pessoa a declarar. É igualmente exceção ao princípio da relatividade dos efeitos do contrato, presente no ordenamento jurídico brasileiro em decorrência de seu uso na vida prática, mas, apenas regulamentada com o advento do Código Civil de 2002, nos artigos 467 a 471, conforme ensina Arnoldo Wald.
Para Caio Mário da Silva Pereira, é modalidade de contrato, uma vez que é negócio jurídico bilateral, formado pela autonomia da vontade dos contraentes, sendo que, resta-se em suas disposições a consignação que “um dos contraentes reserva-se a faculdade de indicar pessoa a que adquirirá, em momento futuro, os direitos e assumirá as obrigações respectivas.” .
Distingue-se da estipulação por ser notadamente sinalagmático, de modo que um terceiro irá assumir tanto direitos quanto deveres, e ainda, caso o terceiro não venha a assumir a posição contratual, o negócio permanecesse válido e exigível entre os pactuantes originários, diferentemente da estipulação em favor de terceiro que apenas se aperfeiçoa com a aceitação do beneficiário, e se tal fato não ocorre, resume-se a avença em eventuais perdas e danos entre os originários contraentes.

Sistemática e aplicação prática na legislação vigente
Partindo do pressuposto que o Código Civil de 2002 repetiu “ipsis literis” as disposições acerca da Estipulação em favor de terceiro, o mecanismo deste Instituto é quase que centenário.
Há ajuste de vontades entre o estipulante e o promitente, sendo o primeiro aquele que visa constituir o benefício em face de outrem e o segundo quem se vincula à tal obrigação, sendo que a execução da avença está atrelada ao consentimento do terceiro/beneficiário.
O entendimento de que o beneficiário pode demandar em juízo para a execução do contrato. Ressalta-se.
AÇÃO DE INDENIZAÇÃO LEGITIMIDADE PASSIVA – ACIDENTE DE PASSAGEIRO DE AERONAVE – CONTRATO DE SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO PROPOSTA PELO TERCEIRO PREJUDICADO CONTRA SEGURADORA POSSIBILIDADE. O terceiro beneficiário, ainda que não tenha feito parte do contrato, tem legitimidade para ajuizar ação direta contra a seguradora para cobrar indenização contratual prevista em seu favor. INÉPCIA DA PETIÇÃO INICIAL DOCUMENTOS INDISPENSÁVEIS À PROPOSITURA DA AÇÃO INOCORRÊNCIA Os documentos previstos no contrato de seguro não são indispensáveis à comprovação do direito à indenização, pois podem ser substituídos por outros elementos de convicção produzidos no curso da instrução processual DENUNCIAÇÃO DA LIDE AO INSTITUTO DE RESSEGUROS DO BRASIL PELA SEGURADORA INTERVENÇÃO NÃO OBRIGATÓRIA – INDEFERIMENTO – POSSIBILIDADE – PREJUÍZO AO ANDAMENTO DO PROCESSO RECURSO DESPROVIDO.) (grifo nosso).
Em se tratando de plano de saúde coletivo é corriqueira e triste defesa das seguradoras de saúde, em demandas judiciais que objetivam a revisão de cláusulas contratuais de planos contratados por pessoa jurídica, aduzir que o segurado enquanto pessoa física, por não fazer parte do contrato em questão, não teria legitimidade ativa para questioná-las.
Destarte, não apenas os Egrégios Tribunais regionais, mas o próprio Colendo Superior Tribunal de Justiça, possui entendimento uníssono pela legitimidade ativa de beneficiários, por clara subsunção ao artigo 436, parágrafo único, Código Civil.
AGRAVO REGIMENTAL. PLANO DE SAÚDE. REAJUSTE DE MENSALIDADE EM RAZÃO DE MUDANÇA DE FAIXA ETÁRIA. OMISSÃO DO ACÓRDÃO RECORRIDO. INEXISTÊNCIA. BENEFICIÁRIO. LEGITIMIDADE ATIVA. CLÁUSULA CONSIDERADA ABUSIVA. 1.- Consoante dispõe o artigo 535 do CPC, destinam-se os Embargos de Declaração a expungir do julgado eventuais omissão, obscuridade ou contradição, não se caracterizando via própria ao rejulgamento da causa. 2.- Ainda que o plano de saúde seja contratado por intermédio de terceiro, que é o estipulante, o beneficiário é o destinatário final do serviço, sendo portanto, parte legítima para figurar no polo ativo de ação que busque discutir a validade das cláusulas do contrato. 3.- Desse modo, considerando que na estipulação em favor de terceiro, tanto o estipulante quanto o beneficiário podem exigir do devedor o cumprimento da obrigação (CC, art. 436, parágrafo único), não há que se falar, no caso, na necessidade de suspensão do presente feito até o julgamento final da ação proposta pela estipulante em nome de todos os contratados. 4.- A jurisprudência deste Tribunal consagrou o entendimento de ser abusiva a cláusula contratual que prevê o reajuste da mensalidade de plano de saúde com base exclusivamente em mudança de faixa etária, mormente se for consumidor que atingir a idade de 60 anos, o que o qualifica como idoso, sendo vedada, portanto, a sua discriminação. 5.- Agravo Regimental improvido. (AgRg no REsp 1336758/RS, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/11/2012, DJe 04/12/2012) (grifo nosso).
A questão da legitimidade ativa para ajuizar ação de reparação civil pelo terceiro que sofreu dano de segurado, mas demanda exclusivamente em face da seguradora é controvertida, pois a luz do entendimento do Colendo Superior Tribunal de Justiça , não se trata de espécie de estipulação em favor de terceiro.
Contudo, data máxima vênia, recente decisão do Egrégio Tribunal do Estado de São Paulo aponta que a denunciação à lide é mera faculdade do segurado e que o terceiro prejudicado, pode demandar exclusivamente a seguradora, por tratar-se de caso onde se aplicam as normas da estipulação em favor de terceiro.
No que tange ainda à execução do contrato com estipulação em favor de terceiro, é de suma importância consignar que a leitura do artigo 463, parágrafo único revela o necessário aceite do beneficiário para a execução do ajuste de vontades e não para o seu firmamento, pois, no ato em si, a vontade do terceiro sequer aparece, daí justamente o entendimento de que o mesmo não participa da relação jurídica entre promitente e estipulante.
Neste sentido a leitura do artigo 437 é complementar ao dispositivo anterior, uma vez que, mesmo na situação de o terceiro beneficiário não reclamar a execução do pactuado, ainda assim, persiste o vínculo obrigacional entre os contraentes.
Na verdade, é tão evidente que o beneficiário é parte suplementar da avença que, inclusive, pode ser modificado de acordo com o arbítrio do estipulante, mesmo que o promitente discorde, podendo esta alteração ser feita em vida ou após a morte do estipulante, enquanto disposição de última vontade.
Para Maria Helena Diniz , a possibilidade de alteração do beneficiário, em que pese não necessitar da concordância do promitente, depende de permissivo contratual, nos termos do artigo 438, Código Civil.
Neste mesmo sentido Roberto Senise Lisboa preleciona.
“Como se trata de uma faculdade do estipulante estabelecer um benefício a terceiro, este pode ser substituído ao alvedrio daquele. No entanto, para que se torne possível a substituição, tal possibilidade deve constar expressamente do contrato, estabelecendo ainda que tal ato poderá ser promovido independentemente da anuência do terceiro e do outro contratante. A substituição poderá ocorrer por meio de simples manifestação da vontade ou, ainda, por testamento.”
Em sentido contrário, o entendimento de José Fernando Simão é que a substituição do beneficiário é direito potestativo do estipulante, revestindo tal problemática de mais uma das questões controvertidas e não resolvidas pelo legislador civilista.
A acertada posição de Arnoldo Wald vislumbra na legislação vigente duas possibilidades de estipulação em favor de terceiro, sendo a primeira em favor de pessoa certa e insubstituível, com esteio no artigo 436, bem como a estipulação cujo beneficiário pode ser substituído por critério do estipulante, desde que haja permissão contratual neste sentido, nos termos do artigo 438.
Por fim, é mister prenotar a distinção apresentada na doutrina de Silvio Rodrigues , no sentido de que há no ordenamento jurídico vigente estipulação em favor de terceiro a título gratuito e a título oneroso, sendo que a primeira permite a exoneração, salvo estipulação em contrato, sem que haja percepção de perdas e danos, mas, na segunda hipótese, por se tratar de negócio oneroso, incabível seria qualquer prejuízo ao credor.

Direito Estrangeiro
Com base no já antecipado ao analisar a origem da Estipulação em favor de terceiro, Bélgica e França foram os primeiros ornamentos a codificar tal permissivo, sendo que, igualmente já salientado que os artigos franceses consagraram maior alcance pelo entendimento jurisprudencial, uma vez que a sua redação dá conta da ressalva que o legislador quis condicionar ao Instituto. Vejamos.
Article 1119
On ne peut, en général, s’engager, ni stipuler en son propre nom, que pour soi-même.

(…)

Article 1121
On peut pareillement stipuler au profit d’un tiers lorsque telle est la condition d’une
stipulation que l’on fait pour soi-même ou d’une donation que l’on fait à un autre. Celui qui a fait cette stipulation ne peut plus la révoquer si le tiers a déclaré vouloir en profiter.

Na Alemanha, o Instituto é codificado pela legislação vigente e consagrado pela melhor doutrina, cuja explicação instrutiva adaptada ao espanhol merece atento:
“El contrato a favor de tercero constituye una importante excepción al principio de que los contratos sólo surten efecto respecto a las personas que intervienem em su celebración. Esta excepción se justifica de los contratos de que se trata no imponem deberes al tercero, sino que le confieren solamente derechos, derechos que, si no le interesan, será libre para no ejercitar o abandonar.”
Em Portugal, há previsão no artigo 443, nº1, Código Civil, sendo definida como o contrato em que um dos contraentes atribui ordem a outro para que haja uma vantagem à terceiro, estranho à relação jurídica, mas para sua eficácia, o terceiro deve manifestar sua vontade.
Na verdade, a peculiaridade em Portugal está relacionada ao consentimento do promitente, no caso de revogação, conforme já decidiu o Tribunal da Relação de Coimbra:

“1. No contrato a favor de terceiro, quando o terceiro não manifestou a sua adesão à promessa e inexiste estipulação em contrário esta é revogável pelo promissário, a menos que tenha sido feita no interesse de ambos os outorgantes, como acontece na hipótese de mútuo oneroso, a favor de outrem, em que os dois contraentes são interessados na promessa, dependendo a sua revogação do consentimento do promitente. (….).”
Salta aos olhos, que mesmo com as peculiaridades de cada ordenamento, a Estipulação em favor de terceiro é Instituto de presença marcante em diversos países, pois, mesmo sendo exceção à forma ordinária de se contratar, é mecanismo de grande auxilio para consagrar o dinamismo das relações patrimoniais no atual Direito Civil.

Conclusão

As críticas da doutrina acerca da escassa regulamentação legal do tema foram confirmadas, e pior, ao decifrar as anotações de mestres e professores à época do Código Civil de 1916, bem como as atuais conclusões na doutrina e jurisprudência, é inânime que a Lei 10.406/2002 não satisfez as celeumas de seu Código antecessor, muito pelo contrário, as desprezou.
Desta feita, um Instituto que poderia ser muito mais recorrido pelos operadores de direito em contratos, especialmente, de cunho patrimonial, deixa de ser solução e passa a ser problema, uma vez que as consequências de sua remissão são notadamente desconhecidas.
À guisa de exemplo, um contrato de locação com estipulação em favor de terceiro, onde os contraentes não optaram em expressamente permitir a substituição do beneficiário, torna-se obscura situação onde o estipulante opta por modificar o terceiro, uma vez que, embora haja permissivo legal, é majoritária a doutrina que vincula tal possibilidade à disposição contratual, mesmo sem que o artigo 438 assim o mencione.
Analisando as questões controvertidas, parece razoável compreender tal Instituto enquanto cláusula, uma vez que, conforme verificado em julgado pátrio, um contrato de compra e venda, não deixa de ser compra e venda porque há estipulação em favor de terceiro, e o mesmo, se dá pelo seguro que beneficia pessoa distinta da relação contratual.
Destaca-se que não fora encontrada nenhuma súmula, ou mesmo enunciado aprovado nas Jornadas de Direito Civil, promovidas pelo Conselho da Justiça Federal que contemplasse ou ao menos tentasse abordar as celeumas que envolvem o presente Instituto.
É de se notar que grande parte da legislação estrangeira compreende a irretratabilidade do Instituto após aceitação formal do beneficiário, fato este que, também necessitaria de maiores esclarecimentos na legislação vigente.
De toda sorte, mesmo com tantas teorias e pouca regulamentação, o que se consagra por esta singela pesquisa é que realmente se trata de Instituto apropriado ao atual dinamismo das Ciências Jurídicas, pois, embora seja regra o princípio da relatividade dos efeitos do contrato, dentre as suas exceções, a estipulação é essencial mecanismo para garantir a autonomia da vontade dos contraentes.

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